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Quem não 'guenta' com mandinga não carrega patuá


Fotografia do Babalorixá Idelson Sales salvando a porta do Ilê Axé Ogunjá.
Série "Candomblés Nagô: Ilê Axé Ogunjá". | © 2014 Tacun Lecy. Todos os direitos reservados.

Ainda inquieto com a conversa olhar de dentro/olhar de fora, iniciada durante os Processos do Silêncio[1], da minha amiga e fotógrafa Denise Camargo, o texto inicial para o blog indicaria reflexões e posicionamentos acerca desse diálogo. Entretanto, no sábado, dia 5 de abril, uma mensagem da, também, amiga e fotógrafa Amanda Oliveira indicava uma publicação no site da Folha de São Paulo. Era a reportagem fotográfica “Afrosantos”, assinada por Alex Almeida, abordando em 20 imagens legendadas o candomblé da Bahia. Instantaneamente, onde havia inquietação manifestou-se a indignação.


Há mais de 15 anos caminho pelo Recôncavo Baiano, onde cheguei com o olhar de fora, atraído pelas histórias dos povos de santo e conduzido pelos ritmos, sons e pisadas de Ventos. Falando pouco e ouvindo bastante, conheci muita macumba da calada da noite[2] e, à chegada do meu Tempo, fui iniciado e confirmado Aṣògún[3] em um Terreiro Nagô, recebendo a honra e a permissão do olhar de dentro.


Confesso que, desde o início das minhas caminhadas no Nagô, seja como filho de santo ou como pesquisador, jamais me deparei com a expressão “candomblé de escravo” como forma de se referir aos candomblés praticados por lá. Também não sei se o repórter/fotógrafo realmente a captou, ou se a criou para causar alguma impressão nos leitores. O fato é que associar as culturas de matrizes africanas ao termo “escravo” é um contrassenso à ressignificação das histórias dessas populações que atravessaram o Atlântico e foram paridas aqui pelos ventres de navios negreiros. Histórias que até bem pouco tempo não eram contadas pelas suas principais personagens, e por isso, a alcunha de descendentes de escravos nos foi imposta de forma tão violenta. Aqui eu devo mencionar nossa ilustre Makota Valdina, para que ela, em nome dos nossos ancestrais, nos represente: “Não sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados”.


Não penso que apenas os iniciados devam escrever ou fotografar os candomblés, mas admito ficar preocupado ao ver câmeras em espaços afro-religiosos. Como fotógrafo, compreendo o quanto é irresistível a espetacular estética dos nossos rituais. Porém, como adepto e pesquisador da religião, sei como sofremos pelas informações deturpadas e o quanto custa preservarmos as nossas tradições.


Na reportagem “Afrosantos” o olhar de fora do repórter/fotógrafo evidencia um conhecimento raso sobre os nossos cultos e uma irresponsável falta de cuidados com o que se propôs a documentar quando, por exemplo, ao publicar que foi ao Ilê Axé Ogunjá, Casa de Ògún, zelada pelo Babalóriṣà Idelson Sales de Ògún e, mesmo com Ògún tão evidente, referencia o seu assentamento a Èṣu; Ainda nesta mesma casa, presencia e fotografa uma reunião de Caboclos e divulga que a partilha de charutos é um mimo durante um culto para Èṣu; Chama a minha acolhedora São Félix, cidade onde renasci para o Axé, de “São Feliz”.


Tenho curiosidade de saber quais foram as suas referências para este trabalho. Onde foi que ele ouviu “candomblé de escravo”, “liturgia de totens e imagens” e que “a festa do povo de santo é sobretudo um patrocínio de obrigação ao orixá, que rotineiramente deve ser agraciado com oferendas ou sacrifícios”; o que significa “Meca Brasileira para os praticantes do ‘candomblé de raiz’”; se ele realmente define o Jeje-Nagô como “termo que resulta da nacionalidade e credos afins”; e se, para ele, o Ộgá tem apenas “a missão de permanecer lúcido”.


As fotografias documental e jornalística devem ser fundamentadas em verdades e exigem dos seus autores seriedade e comprometimento tanto com o que foi fotografado, quanto com quem vai consumir aquele trabalho. Aqui não faço menções à qualidade das imagens e sim aos textos superficiais e equivocados que os acompanham, ressaltando que a entrada do fotógrafo nas Casas de Axé foi e é muito discutida pelos povos de santo, que constantemente são agredidos com as mentiras contadas sobre as suas práticas. A publicação de matérias e materiais equivocados podem fechar essas portas e prejudicar o trabalho sério de antropólogos, etnógrafos e pesquisadores que realmente têm um comprometimento e uma relação especial com essas comunidades.


Essa é uma discussão antiga que aqui trago para reflexões. Muito já se foi falado sobre as fotografias de candomblé de Pierre Fatumbi Verger e de José Medeiros. E nessa conversa de olhar de dentro/olhar de fora, para mim, o importante é que seja sempre um olhar verdadeiro, de entendimento. E, por isso, a revelação do Fatumbi é a que melhor nos representa.


Os candomblés do Recôncavo exigem respeito!

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Link para a fotorreportagem “Afrosantos”: http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/24068-afrosantos

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[1] Oficina com abordagem dialógica e criativa para discutir aspectos teórico/práticos da produção de imagens no universo religioso afro-brasileiro, e as possibilidades artísticas e sociais da imagem na valorização da cultura negra; atividade do programa de mediação cultural para a exposição “E o silêncio nagô calou em mim”.


[2] Usualmente utilizada de forma pejorativa, o termo “macumba”, no Recôncavo Baiano, traduz um sentimento de pertença para os adeptos do candomblé; os mais antigos contam que “macumba boa era feita na calada da noite”.


[3] Em iorubá significa “adorador de Ògún”; nos candomblés do Brasil, é um cargo associado ao Ogã responsável pela consagração dos animais para os Orixás.

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