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Paulo, o Senhor dos Caminhos


O ano era 2012 quando pisei a primeira em um quilombo. Na época ainda trabalhava no Instituto Mauá e fui produzir uma documentação fotográfica sobre o grupo de artesãs quilombolas, que culminou na publicação do livro “Conversa Quilombola: Artesanato e Tradição do Quilombo Campo Grande”.

Para andar pelas trilhas do quilombo, foi fundamental a ajuda de pessoas da comunidade, em especial dos irmãos Miúda e Paulo. Miúda eu conheci assim que cheguei. É uma liderança natural do quilombo, faz parte do grupo de artesãs e da associação de moradores local. Foi ela a responsável por me apresentar aos moradores da comunidade. Mas falarei melhor de Miúda em outro momento.

Nesta publicação, quero contar um pouco do Paulo. Ele foi o meu guia para as caminhadas mais difíceis. Eu o conheci na minha segunda viagem à comunidade, durante uma visita ao terreiro de Maria, que, também é irmã dos dois. Nessa viagem, fui para fotografar paisagens de Campo Grande, tendo como meta principal a Pedra do Monte, um dos lugares mais sagrados de Campo Grande. No terreiro, contei à Maria que subiria à Pedra, pois precisava falar dela no livro, mas que precisava de alguém para me ensinar o caminho. Foi quando Paulo entrou pelo lado da casa, vestido com uma camisa vermelha e preta, uma bermuda rasgada, um chapéu de couro e fumando um cigarro de palha. Na mesma hora disse que iria comigo. Pediu para eu esperar um pouco, saiu e quando retornou trazia um facão, uma bota e um garrafão de água.

Seguimos a trilha acompanhados de outros moradores que se empolgaram com o visitante fotógrafo que estava na comunidade. O horário não era dos melhores, pois corríamos o risco de escurecer ainda quando estivéssemos por lá... Mas fizemos toda a subida, com trechos íngremes e bem mais difíceis... Até que chegamos e foi tudo muito gratificante. Da Pedra do Monte podíamos ver toda a comunidade e, enquanto eles comemoravam e conversavam, fui fazer o que tinha de fazer... Até que uma chuva fina começou a cair e, bem na nossa frente, um arco-íris se armou. Aproveitei o momento para capturar algumas imagens até que o Paulo me chamou e pediu para fotografá-lo. Preparei a câmera e antes que eu o colocasse em foco, ele levantou o facão e falou: “Isso é que é liberdade! Eu sou livre!

A foto entrou para o livro, o momento entrou para a história e eu entrei, de vez, para a comunidade. Depois desse dia, subi à Pedra do Monte mais duas vezes. Todas na companhia de Paulo. Sempre que eu ia lá, nos encontrávamos para uma prosa. A última foi no final do ano passado, quando fui receber o título de cidadão da Comunidade Remanescente de Quilombo Campo Grande. Era a manhã de um domingo, dia 1 de dezembro... Depois da festa da titulação, eu e minha filha Larissa dormimos na casa de Miúda e ao acordarmos, ficamos conversando no quintal e foi quando o Paulo, passando pela estrada de terra, me viu e parou para a nossa última prosa. Ao sair, Miúda me falou que ele estava com a saúde bastante comprometida e ali eu senti que não subiríamos mais na Pedra do Monte.

Na semana passada, Miúda me mandou uma mensagem. Paulo fez a sua passagem e descansou desse mundo. Agora, a sua liberdade está, de fato, na eternidade e sei que, quando eu retornar lá, em breve, seu espírito estará livre, pelas trilhas do quilombo, guiando as pessoas de bom coração.

Comigo ficam as saudades, a gratidão e essa pequena homenagem. Segue na luz, meu amigo.

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📷📚 Fotografia integrante do livro “Conversa Quilombola: Artesanato e Tradição do Quilombo Campo Grande – Santa Teresinha/BA” (2013).

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