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Força de General, ternura de Mãe


Fotografia de Dener e Tacun Lecy na Ilha de Vera Cruz/BA.
Dener e Tacun Lecy. | © 1998 Tacun Lecy. Todos os direitos reservados.

Na madrugada do último sábado, o General veio me visitar. Imponente como sempre, chegou rasgando a noite com o sabre em punho e passadas firmes, estremecendo o chão e abalando as minhas estruturas. Parou e olhou-me de cima a baixo, como se inspecionasse um soldado da sua tropa. As feições duras do Guerreiro, de repente, deram espaço, por um rápido instante, a um olhar de preocupação e afeto com o seu filho. Um olhar que eu nunca havia visto nele antes e que jamais esquecerei.

Sem dizer uma palavra, embainhou a espada e retirou da sua roupa duas flechas de màrìwò[1]. Com a primeira, ele passou por todo o meu corpo e a entregou a uma mulher que o acompanhava de cabeça baixa e, com o olhar já refeito, indicou que ela a despachasse na estrada; a segunda foi amarrada em meu peito, no sentido transversal, da mesma forma como ele usa nas suas pelejas. Após esse ato, o General apontou para os pratos nagé emborcados no canto daquele barracão e logo entendemos o que ele ordenava.

Os encontros com Ògún são sempre muito esperados com alegria e tensão. Nunca sei o que pode acontecer para o bem ou para o mal. Baixei a cabeça e as lágrimas escorreram pelo meu rosto até que senti uma mão suave e perfumada as enxugando. O toque e o cheiro me transportaram ao útero onde fui gerado no Raiz de Ayrá e, ao levantar a minha cabeça, pude ver Ọ̀ṣun Kecy posicionada entre eu e o General. A sua outra mão também o tocava no rosto, abrandando o seu ọkàn[2] e me dando um conforto para sentir e entender o meu momento.

Minha mãe Ọ̀ṣun Kecy intercedeu por mim e fez Ògún perceber que há o tempo para guerrear e o tempo de se resguardar e que, por agora, eu estarei no colo das suas águas. Mas também o deixou sabedor que cumpriremos com mais aquela missão de reunir o seu povo em outubro para o seu banquete. Então nos despedimos e ele se foi com um leve sorriso no rosto.

A aparição desses Orixás foi um prenúncio de como seria o final de semana. As lembranças do meu filho vieram fortes e meu peito apertou de saudades que ainda doem muito. E hoje, na data em que meu netinho completa um mês de vida, ainda é difícil equilibrar a alegria da sua chegada com a tristeza da partida do Dener. Ainda olho o horizonte buscando a sua presença no nosso cotidiano e as suas reações a cada ação do Dener Júnior. Só Tempo...

Ao seu modo, Ògún veio me dar forças para seguir em frente. Sinto sua energia irradiando o meu corpo, me chamando para a estrada. Mas ainda é o tempo de estar no colo de minha ìyá[3] Ọ̀ṣun. Ela é mãe e as mães entendem melhor que qualquer pessoa o que é isso!

General, meu General... Hoje eu sei que nem todas as batalhas podem ser vencidas. Mas, tenha certeza que todas as obrigações serão cumpridas e, ao final da minha caminhada nesse àiyé[4], sairemos vitoriosos dessa guerra.

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[1] Folhagem tenra da palmeira. Folha do dendezeiro desfiada, utilizada de diversas formas nos candomblés. Roupa de Ògún.

[2] Coração. Alma, espírito, consciência.

[3] Mãe.

[4] Mundo, existência, tempo de vida, tempo.

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